
EXISTE UMA ENERGIA SEDUTORA NESSE COMBINADO, NO MISTÉRIO DO DESCONHECIDO.

Existe um lugar sem começo, poroso, que não faz distinção entre corpo humano - natureza - coração, onde a matéria pulsa, escuta, atravessa. E num pacto de experiências íntimas e territórios coletivos o desejo de permanecer, de transformar-se, de manter-se vivo. Um combinado misterioso que não se sabe com quem, nem com o quê, muito menos por qual razão ele existe.
Nesse espaço de passagem, onde o corpo deixa de ser limite para tornar-se meio, provar o mundo com as mãos, com gosto, com a boca, com o olfato, com a escuta e com os silêncios se faz necessário, para que o que é de natureza sutil atravesse a pele. Um gesto que demanda presença, aterramento e nudez.
Um lugar que não está no raso do cotidiano, é preciso um mergulho sensível e afetivo para se dar conta de todas as partículas e organismos, cumprindo esse combinado a todo momento. O presente é muita coisa, estar vivo é muita coisa. Esse atordoamento do corpo poroso atravessado pelos encontros e memórias é movido pela dúvida: não se sabe quem vem lá, não se sabe o que vem lá.
E quase que numa procissão de fé no inominável, no indizível a vida vai se elaborando.
Tudo aqui pulsa em estado de impermanência. O tempo não é cronológico, é orgânico: apodrece, germina, respira, evapora. Dói, ao mesmo tempo, revisitar as memórias do que já foi, do tempo que não é mais, que se esvai. Mas é ainda - corpo, sangue, natureza, seiva. A dúvida volta: que mistério é esse que nos mantém aqui?
“ O estranho me toma: então abro o negro guarda-chuva e alvoroço-me numa festa de baile onde brilham as estrelas” (Clarice Lispector)
E numa investigação íntima entre corpo humano e natureza se revelam os mistérios da regeneração, do cuidado, da cura e do amor, não se sabe onde uma coisa termina pra começar a outra. Há de se ter coragem e um bocado de generosidade para o encontro. E só quando se para pra reparar, mas só quando se para pra reparar mesmo, olhando pra fora, que a ladainha cotidiana nos revela o que faz sentido (o que é vivo).
“Nós combinamos de não morrer” não é uma promessa, é uma tentativa - sensação. Existe uma energia sedutora nesse combinado, no mistério do desconhecido, por onde Fessal transita, dispõe-se terreno fértil e vestígio, como quem adentra uma floresta densa, úmida e se depara com uma infinidade de ecossistemas.
A pintura aqui é processo vivo, o tempo de maturação das obras é também o tempo do corpo. A mão vai dando lugar ao desenho, fluido e intenso, as memórias vão se sobrepondo em camadas, ganhando espessura, tátil, causando quase uma sensação na boca, como se fosse preciso digerir o que se apresenta ali, a densidade do que é.
As decisões dentro da pintura revelam um corpo coletivo, um lugar de acolhimento, onde um se apoia no outro e, nesse movimento, os corpos vão se fundindo, se transformando em um organismo único, vivo, em fluxo constante.
As obras se oferecem como espelhos vibráteis para quem ousa encarar de frente o intervalo entre o que ainda pulsa e o que já se desfez. Não se mergulha duas vezes no mesmo rio: ao retornar, o gesto é outro, o corpo é outro, a dúvida é outra. Existe um certo gozo nessas transformações, uma generosidade desse combinado que se renova a todo momento.
E se a pele que me habita é mais sábia do que eu, como disse o artista, talvez reste apenas se entregar ao fluxo dessa abundância e sabedoria do que é vivo. Quando se pensa: no que fui quando criança, no que fui ontem, há um segundo atrás, só há uma coisa a ser dita: bem-vindos ao futuro.
" De mim no mundo quero te dizer da força que me guia e me traz o próprio mundo, da sensualidade vital de estruturas nítidas, e das curvas que são organicamente ligadas a outras formas curvas…
O erotismo próprio do que é vivo está espalhado no ar, no mar, nas plantas, em nós, espalhado na veemência da minha voz, eu te escrevo com minha voz..."
"O que canta a natureza?"
C.L.
ANANDA BANHATTO