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TEXTO CURATORIAL

Por Ananda Banhatto

Essa Coisa de Fazer o Mundo Acreditar

 

Abrir a porta do bar ao amanhecer — em pé sobre uma caixa de cerveja, servindo a primeira dose de cachaça para iniciar o dia de trabalho de clientes assíduos, anotando os pedidos fiados no papel do pacote de cigarro — foi assim, na infância, que a rua virou sala comum para Fessal, uma ideia de casa calçada - onde a bebida é o idioma:  convoca presenças, lubrifica conversas, ambiente entorpecido onde o tempo corre torto e, ainda assim, preciso. Para Fessal essa fronteira nunca foi sólida. A porta do bar é janela aberta para o fluxo de corpos, afetos e ruídos que atravessam a existência.  Daí nasce um olhar que não teme o entorpecimento, que aceita o risco do encontro e a instabilidade do presente.

 

Inspirado por artistas como Xadalu, Fessal perturba o cotidiano com delicadeza e insistência. No imediatismo urbano — os lambes criam pausas, reprogramam o ritmo e instalam subjetividade. Cada peça é uma porta entreaberta. A rua não é cenário: é substância. — para lembrar que presença se aprende na passagem. 

 

A arte não está no museu — está na rua. E a rua, é um grande terreiro de experiências, onde cada esquina é um ponto de história e cultura viva, uma pedagogia de convivência e resistência que não cabe nos livros ou nas galerias.

 

Colados em zonas de tensão, invertem o valor da obra: no simples e no efêmero, a vida aparece. Ele se instala no espaço público, não para se perpetuar, mas para desaparecer. Sua presença já carrega a certeza da ausência. Como a vida, é finito. E nessa finitude reside a sua potência: a urgência de olhar, sentir, encontrar — antes que se vá.

 

A efemeridade das obras espelha a brevidade da existência. Nesse intervalo entre presença e desgaste, o trabalho opera como dispositivo de tempo, reabrindo a experiência do agora. Fora de salas climatizadas, roteiros previsíveis e horários de funcionamento, os lambe-lambes restituem à arte o deleite da descoberta. Eles acontecem à deriva dos trajetos, no desvio de uma esquina, na fresta do dia.

 

Todas as peças originais foram registradas e convertidas em arte digital, multiplicando caminhos sem trair a poética do efêmero. A reprodução, longe de neutralizar a rua, prolonga sua energia. Assim, a mostra rompe os limites convencionais de exposição para afirmar que a apreciação da vida — e da arte — está em todos os momentos, especialmente naquele que temos nas mãos: este, agora.

 

"Essa Coisa de Fazer o Mundo Acreditar" evoca o poder que temos de convencer, de transformar a visão que o mundo tem de si mesmo. As obras são sussurros de que é possível acreditar em outras realidades. Colar essas imagens em lugares de tensão no centro do Rio é como plantar em solo difícil. Cada cor , cada traço que questiona ou encanta, é uma tentativa de fazer o mundo acreditar que a beleza, a coragem e a diversidade ainda podem se fazer ouvir e ver, mesmo em meio ao caos.

 

A arte aqui é uma ação — um jeito de desafiar o que nos faz duvidar, de criar espaço para acreditar no que é subjetivo, no que é verdadeiro para cada um de nós. 

E essa 'coisa' de fazer o mundo acreditar é, na verdade, uma força coletiva, uma vontade de transformar o olhar, de fazer a cidade e as pessoas enxergarem além do visível. É uma provocação gentil, uma revolução silenciosa feita com cores e imagens que querem que a gente se entregue à possibilidade de acreditar novamente — no mundo e principalmente nos encontros.

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